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Alimentação na infância e seus diversos sentidos


Atualmente nos deparamos com o aumento nos índices de obesidade na população em geral. Nunca antes na história houve tanta gente com excesso de peso, trazendo um conjunto de conseqüências graves. E na infância e adolescência esse quadro não é diferente, estatísticas mostram que 10 a 25 % das crianças têm algum transtorno alimentar. Junto a esse quadro podemos também observar que a alimentação cada vez mais ocupa um lugar privilegiado nas campanhas de marketing. Os alimentos passam a se transformar em mercadoria, ou seja, o consumo de alimentos passa a ser estimulado ao máximo de forma a assegurar um importante nicho do mercado, aumentando lucros da indústria alimentícia, mas sobretudo, tendo o objetivo de ser uma marca que se torne objeto de desejo para as pessoas.

Nesse sentido, somos insistentemente estimulados e persuadidos a consumir alimentos-produtos, e de certa forma quanto mais cedo às pessoas forem conquistadas é melhor, já que se poderá garantir um consumo fiel e potencial a tais produtos. As crianças passam a ser o público alvo de muitas campanhas de marketing, que geralmente associam os seus produtos com sensações, imagens de prazer, com estados emocionais que capturam e seduzem o imaginário infanto-juvenil.

E por que a alimentação é um grande alvo para o marketing? Todos nós sabemos que a alimentação está intrinsecamente ligada à questões de ordem afetiva, está relacionada a algo muito primitivo em todos nós que se referem às primeiras sensações de prazer, aos primórdios da relação com o outro. No início da vida, a alimentação ocupa uma grande parte de tempo e investimento afetivo, tornando-se uma dimensão central no desenvolvimento infantil, já que é em torno dela que se organizam desde o nascimento os primeiros contatos entre o bebê e as pessoas que o cuidam. Já nas primeiras horas de vida o mundo entra pela boca. Junto com o leite vem o colo, o olhar, o calor, o carinho, cheirinho, as palavras. Depois das primeiras mamadas, a fome jamais será apenas de alimento, mas estará associada a esse “algo a mais” que compõe a cena da amamentação, por exemplo, o qual a criança chorará então por fome de alimento, mas também de palavras, de carinho, de olhar, de calor, etc. Na cena da amamentação, portanto, tem muito mais coisas acontecendo do que simplesmente nutrição. É através das palavras e do olhar da mãe que se inicia o processo de constituição psíquica do bebê, e com isso a criança vai constituindo formas de interação consigo e com o mundo.

Então, quando estamos no campo alimentação, estamos num terreno fecundo dos afetos, das sensações, das lembranças, das relações, enfim de algo que está muito relacionado à nossa identidade. Os hábitos alimentares são registros importantes que não desaparecem numa sociedade. As pessoas podem esquecer o nome do antepassado, a língua, mas quando se reúnem comem a comida da região de onde vieram. Quando nos alimentamos satisfazemos muito mais que as necessidades biológicas. Temos vontade de comer algo quente, salgado, doce, com tal tempero, etc. E essas vontades mudam muito. O que nos sacia está ligado aos nossos estados de espírito, ao desejo. Você já reparou que nossas vontades sempre estão associadas a alguma sensação, lembrança, sentimento que a comida nos proporciona?

Frente a isso podemos pensar: como anda a alimentação das crianças? Por onde andam suas vontades? Muitas vezes as crianças buscam através da alimentação mostrar ou dizer algo. Como o repertório cognitivo infantil é limitado, muitas vezes é através do comportamento alimentar que a criança expressa suas experiências subjetivas e seus conflitos emocionais. Portanto, quando uma criança anda com um apetite insaciável, ou recusando-se a comer, ou com uma pequena quantidade e variedade de alimentos que aceita, precisamos ficar atentos, pois esses comportamentos podem ser indícios de estados, conflitos ou bloqueios emocionais. As crianças podem apresentar uma gama ampla e variada de alterações do comportamento alimentar, que ocorrem em um continuum, desde o nascimento até a puberdade podendo refletir situações passageiras, ou seja, dificuldades alimentares transitórias, ou podem se caracterizar como um distúrbio alimentar estabelecido que produza prejuízos no desenvolvimento.

Quando uma criança não tem se saciado com as refeições, para além do alimento o que mesmo ela está buscando? Nós sabemos que tem comidas que são representantes de algumas situações, por exemplo, comidas do final de semana. Quando as crianças solicitam frequentemente essas em outros momentos, precisamos pensar o que mesmo elas querem e estão buscando? Será que é a comida que estão querendo? Será que estão buscando encontrar na comida algumas experiências e sensações que estão relacionadas a aquela comida, como por exemplo, o momento que os pais estão disponíveis para ela, momento de carinho, atenção, etc. Muitas vezes nas birras que envolvem a alimentação, o que as crianças querem é saber se os adultos estão atentos a ela. E quando as crianças insistem em certos alimentos e querem muito aqueles alimentos que vêem nas propagandas, nos outdoors, no supermercado, o que fazer? Os adultos podem pensar e avaliar o que mesmo a criança quer com isso, em que momento isso é possível e viável de oferecer.

Quando nos deparamos com crianças e adolescentes que estão encontrando dificuldades em lidar com a alimentação, apresentando comportamentos alimentares que estão prejudicando seu desenvolvimento, sua auto-estima, socialização, assim como provocando distúrbios clínicos (distúrbios cardiovasculares, hipertensão, diabetes, etc) e que então necessitam de um acompanhamento especializado, o tratamento passa necessariamente por uma intervenção transdisciplinar que contemple os diversos aspectos da vida deles, tanto a observação e orientação da alimentação, quanto um espaço de reflexão, de fala e de troca para contemplar os aspectos emocionais envolvido nesses sintomas.

Tendo como base o entendimento da complexidade envolvida nessas situações, o Espaço Dom Quixote está iniciando Grupos de Reeducação Alimentar para crianças e adolescentes com coordenação de uma psicóloga e uma nutricionista, com objetivo de dar suporte à criança e ao adolescente na transformação do modo como lida com sua alimentação, contemplando as especificidades que o atendimento com crianças e adolescentes exige, ou seja, utilizando-se da técnica através do jogo, do brincar, atividades práticas na cozinha, rodas de conversa e discussão sobre os assuntos surgidos no grupo.


Thais C. Chies - thaispsico@espacodomquixote.com.br
Psicóloga do Espaço Dom Quixote

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